2010, numa grande cidade vivia um rapaz
com grandes sonhos. Arys estudava música numa conceituada universidade do país,
havia ganhado uma bolsa concedida somente aos excepcionais. Ele queria se
tornar um grande maestro da Orquestra Internacional de Paris. Treinava todos os
dias: domingos, sábados e feriados. Seus dedos já estavam calejados de tanto
esforço, mas para o jovem estudante todo cansaço era ínfimo diante da sua
ambição; “ser o melhor”.
Para se tornar um grande músico
treinava mais de sete horas por dia. Em seu quartinho no centro da cidade,
debruçava-se em livros de partituras repetindo as notas de composições
clássicas ou mesmo criando suas próprias peças. Uma vida cansativa para quem
exige muito de si mesmo, mas não infeliz para um músico.
Numa manhã há dez anos atrás, por
acidente, acordou tarde para sua aula de composição musical criativa avançada,
a disciplina que ele mais amava. Enfurecido jogou contra a parede o despertador
que julgou ser culpado por seu atraso e sem tomar banho pôde acompanhar os
últimos trinta minutos da aula. Quando chegou em casa percebeu um celular
despedaçado pelo seu pequeno cômodo conhecido como seu lar.
Não tinha dinheiro para comprar um novo
“despertador” ou o que a maioria das pessoas, menos Arys, chamam de celular. Lembrou-se
então que perto dali morava sua ex-namorada que era rica Amanda, namoraram por
alguns anos, porém Amanda terminara a uns três meses. No fundo Arys queria um
pretexto para reencontrar a sua ainda amada Amanda. Claro que Arys pagaria assim
que recebesse seu salário, era apenas um empréstimo.
Chegando lá tocou a campainha da bela
casa dos pais de Amanda, ela o atendeu. Muito surpresa deu um abraço em Arys e
lhe fez perguntas genéricas como “como você tá? ”. Enfim Arys teve coragem e revelou
seu objetivo secundário:
- Então, na verdade, eu vim pedir
emprestado...vim perguntar se você poderia me emprestar...é... – Suando frio e
com nó na garganta.
- Dinheiro? – Amanda interrompe.
- Sim, mas é emprestado, eu juro que
assim que puder eu pago. – Diz Arys coçando a cabeça.
Amanda pareceu surpresa e perguntou se
ele estava passando por dificuldades. Arys negou tudo e revelou que só queria
ter um pretexto para ver Amanda. Após alguns minutos de boa conversa, Amanda
foi em casa e pegou o dinheiro. Educadamente ela diz:
- Bem, você se lembra que eu quebrei
seu violino e que nunca paguei pelo conserto ou comprei um novo. – Arys
simplesmente riu e falou de forma sincera:
- Aquilo foi um acidente eu nem
lembrava mais.
- Mas eu não esqueci, considere minha
dívida com você paga. – Diz em tom de brincadeira.
Os olhos de Arys ainda brilhavam quando
cruzavam com o olhar de Amanda. Em sua cabeça queria convidá-la para um novo
recomeço. Tudo aconteceu muito rápido, os dois não tiveram tempo de se
despedir. Amanda disse boa noite e se despediu, Arys fez o mesmo e hesitou. Já
se afastando da casa se lembrou das palavras de seu professor sobre a vida: “Às
vezes nós devemos ter coragem de nos arriscar, não podemos simplesmente deixar
uma chance passar. Vocês como futuros músicos devem ser os primeiros, pois
lidam com uma arte caótica e complexa como a música. Tem que ter pulso firme
para lapidar sua arte e pulso firme para aproveitar as dificuldades. ”
Arys deu meia volta e decidiu que
convidaria sua amada para o cinema, esqueceu que não tinha dinheiro nem para a
pipoca, mas não existe razão nas coisas feitas com o coração. Antes de tocar a
campainha, vindo do interior da casa, ouve palavras que perfuram como uma
espada em chamas o seu coração:
- ...deu vergonha, mas é claro que o
cretino veio cobrar o violão idiota que eu quebrei. Você não vai cobrar essa
merreca de mim se a gente terminar né?!
- Eu tenho dinheiro gatinha.
Confuso e meio tonto Arys jogou o
dinheiro por baixo da porta e saiu desolado. No caminho para casa lembrou-se de
uma outra frase de uma professora da quarta série: “A vida não é um mar de
rosas. Não dá para brincar a semana toda e querer tirar dez na prova de
matemática. Você vai se dar mal. ”
Sem despertador e sem dinheiro Arys
resolveu fazer algo que detestava, pedir dinheiro a sua mãe. Preocupada evidentemente
sua mãe deu seu cartão de crédito e disse que poderia comprar até roupas se
quisesse. Ele planejava pagar no mesmo dia que seu salário fosse liberado.
Ele dirigiu-se a uma loja escondida,
mas aconchegante chamada Tecno Tempo. E pediu ao vendedor um celular bom,
barato e que tivesse despertador. O vendedor, com um sotaque que Arys não
conseguia identificar, falou-lhe:
- Pois bem na Tecno Tempo, nós temos
produtos inimagináveis. Aqui os sonhos se tornam realidade e você sempre sai
satisfeito. – Surpreso com a resposta, Arys pôde apenas falar:
- Ok, que celular você me recomenda?
Com os olhos arregalados e um sorriso
extremamente excitado, aponta para um celular no fundo da loja. O Zi-fone apesar
de disfarçado estava num mini pedestal de vidro, sua cor amarela chamava a
atenção e seu preço era de aproximadamente 300 dólares. Incomodado Arys
questiona:
- Não está meio caro? – Rapidamente o
vendedor retruca:
- Acredite em mim ele está
infinitamente barato para suas funções. Esta é uma edição limitadíssima, poucos
no mundo têm a sorte de possuí-lo.
Para se livrar do papo do vendedor
esquisito Arys paga com o cartão de sua mãe e vai para sua casa. Era por volta
de dez da noite quando chegou, preparou uma comida rápida e ensaiou durante
algumas horas. Às três foi para a cama e tirou o celular da caixa para
programar o despertador. Estranhamente o celular já mostrava o horário certo e
apenas isso. Não tinha nenhuma outra função a não ser mostrar o relógio, Arys
não acreditou e imaginou ser um defeito de fábrica. Pôs o celular de lado e
dormiu.
No outro dia acordou profundamente
relaxado e descansado o que o fez pular da cama, pois achava que estava muito
atrasado. Seu pequeno quarto não tinha janelas e não podia julgar o quão tarde
seria. Lembrou-se que apesar de inútil o celular ainda marcava a hora certa.
Ainda ensaboado foi ver o quão grave era o seu atraso. O celular estava
marcando a mesma hora no momento em que ele foi dormir, o jovem estudante
conteve-se para não atirar outro celular pela parede.
Vestiu-se e saiu apressado para sua
aula das nove, seja lá que horas eram. O corredor do apartamento onde morava
estava escuro e silencioso algo incomum, pois pela manhã ouvem-se barulhos de
máquinas de construção, carros e pessoas na rua. Não deu muita importância e
saiu. Para sua surpresa ainda era madrugada.
Já faziam seis horas desde que Arys
acordara, estava sentado na cama tentando se lembrar se teria sido dopado na
noite anterior. Não conseguia pensar direito e achou que estava enlouquecendo.
O silêncio era perturbador e já podia escutar os fluídos de seu corpo e seus
batimentos tal como gritos ensurdecedores.
Dez horas se passaram e Arys já gritava
por socorro definitivamente estava louco. Saiu pelo corredor batendo nas portas
dos vizinhos pedindo ajuda. Ninguém se manifestava. Numa atitude desesperada
arromba uma porta e se depara com uma cena bizarra.
Corre para o seu quarto e se tranca.
Tremendo e suando frio se recolhe repetindo para si:
- Isso é apenas um surto, não é real,
não é real! Quando isso passar vou procurar um psiquiatra e tudo vai ficar bem.
Arys lembrou-se do que sua mãe dizia
quando acordava assustado de um pesadelo: “Calma, foi só um pesadelo. Sua mente
é mais forte que tudo isso. ” Lentamente foi acalmando-se respirando mais
pausadamente. Um barulho estridente como de um toque de celular ecoa em sua
cabeça tão forte que chacoalha seu cérebro.
O Zi-fone estava tocando. Para aliviar
a dor em sua cabeça o jovem assustado atende. Uma voz familiar fala do outro
lado da linha:
- Você deve estar surtando agora, foi o
que aconteceu comigo. Não se preocupe, você se acostuma com o barulho com o
tempo. Devo dizer que o tempo agora passa a ser seu, você não pode avançá-lo ou
retrocedê-lo, apenas pará-lo. Use-o com sabedoria, você foi a primeira pessoa
que eu falei depois de muito tempo. Adeus. – A ligação é interrompida por um
forte ruído.
Ainda mais confuso Arys acredita que
tudo aquilo não passava de uma terrível e realista alucinação. O horário
marcado no celular volta a correr. Do corredor escuta-se o grito de um vizinho.
- Mas que... colocaram uma bomba na
minha porta!
Aquela tinha sido uma experiência
assustadora. E a primeira pessoa com quem falou sobre o que tinha acontecido
foi com a sua mãe Lúcia. Inicialmente sua mãe deduziu que seu filho tinha usado
algum tipo de droga na noite anterior ficando bastante preocupada. Arys negou
com veemência as suspeitas da mãe.
Após alguns dias sem entender o que
tinha ocorrido Arys não frequentava mais as aulas na universidade de música e
não tocava mais como antes. Lúcia percebeu que precisava ajudar seu filho:
- Me conta o que aconteceu. – Lúcia
indaga com expressão preocupada. Com os olhos baixos Arys responde:
- Eu já te contei tudo. Mas sei que é
difícil de acreditar.
Mais tarde Lúcia decide levar seu filho
para um psiquiatra, em seu carro. Muitos acontecimentos após aquele dia mudaram
profundamente Arys.
Após sessões de psiquiatria ele
percebeu que não podia arrancar a angústia que sentia no peito. Os remédios que
usava não surtia qualquer efeito. Resolveu entender a história por conta
própria.
Entrou no seu antigo apartamento e
recolheu o celular, guardou-o na embalagem e dirigiu-se até a loja para
devolvê-lo. Arys queria provar para si mesmo que era mais forte do que qualquer
problema em sua mente. Devolver o celular seria um ato simbólico que mostrava
que ele estava no controle. Chegou na loja, mas só encontrou escombros sendo
retirados por tratores. Assustado perguntou a um morador:
- O que aconteceu aqui?!
- Um maluco entrou aqui e se explodiu
com a loja. – Respondeu o homem.
- Porquê?! – Pergunta o jovem com
expressão assustada.
- Terrorismo, está em todos os jornais,
você não assiste TV?
Após algumas pesquisas na internet, Arys
soube que o terrorista se tratava de um ex-funcionário da loja, o mesmo que lhe
vendera o celular dias atrás. Percebeu que se continuasse com isso
enlouqueceria de vez, voltou para sua casa e retomou para suas aulas na
faculdade.
No primeiro dia que voltou a
universidade seus amigos o encheram de indagações, Arys não falou tudo por medo
que fosse tachado de louco. Seus amigos ficaram tristes e ofereceram ajuda.
Arys insistia que tudo estava bem.
Na aula da tarde uma amiga
perguntou-lhe:
- Que horas são?
- Não tenho relógio.
- Então usa esse seu tijolo amarelo!
Arys volta o olhar para dentro da sua
bolsa aberta e percebe que no impulso havia guardado o Zi-fone por engano. Sua
amiga pressionou:
- Custa dizer a hora?!
Seu coração acelerou ao pensar o que
aconteceu da última vez que tocara no celular. Hesitou. A amiga continuou:
- Meu Deus, você está com uma expressão
de maluco.
Ao ouvir estas palavras tomou coragem e
pegou o celular dizendo:
- São catorze e... – O jovem caiu da
cadeira assustado.
Os alunos da sala estavam completamente
paralisados. O que Arys mais temia aconteceu de novo. Tentou manter a calma,
mas sem sucesso. Nervoso, tocou o celular e seus amigos voltaram ao normal. Ele
só podia pensar o quão esquisito era seu transtorno e parou e retomou o tempo
durante algumas vezes. Até que tiros foram ouvidos e um aluno passou gritando:
- Terroristas! Fujam!
Todos entraram em pânico e se
esconderam debaixo da cadeira. Estava silencioso e passos podiam ser ouvidos do
corredor. Lentamente se aproximavam. A porta foi fuzilada, mas antes que
pudessem entrar, num comportamento quase instintivo Arys tocou a tela de seu
Zi-fone e parou o tempo.
Após respirar fundou saiu de baixo de
sua mesa e viu as várias balas congeladas, podia tocá-las e movimentá-las como
uma peça de lego. Desviou uma bala que estava a pouco menos de dez centímetros
da cabeça de um aluno apavorado.
Saiu da sala e percebeu que por volta
de vinte homens estavam se aproximando da sala, eram como bonecos de cera
hiper-realistas, estavam fortemente armados e usavam equipamentos de combate,
com coletes a prova de balas, capacetes e máscaras. Arys afastou-os e
tirou-lhes as armas e equipamentos.
Andou pela universidade atrás de mais
homens como aqueles. Em todo o lugar que olhava, podia ver que o tempo não
avançava em relação aos pássaros no céu, as formigas na grama.
Viu que a porta do banheiro masculino
estava arrombada, lá dentro haviam dois homens com a mesma vestimenta um apontava
sua metralhadora para fora enquanto o outro com o gatilho apertado parecia
disparar contra um aluno, a pólvora já explodia pelo cano e a bala estava
parada no ar.
Para sua surpresa Amanda sua
ex-namorada e um cara com físico atlético estavam apavorados dentro de uma
cabine do banheiro. O rapaz estava sem camisa e segurava Amanda como se
estivesse protegendo-se do homem armado, parecia chorar desesperadamente.
Amanda estava chorando e vestindo um sutiã rosa e com a maquiagem borrada, o cabelo
loiro totalmente assanhado. Arys salvou a vida dos dois.
Após várias horas Arys desarmou todos
os homens e amarrou-os colocando numa sala com uma placa escrita à mão com os
dizeres: “Eu capturei todos, não sei explicar exatamente como fiz isso, mas fiz
o que é certo. ” O rapaz deixou as armas e coletes quebrados em frente a sala
que os homens estavam.
Após esse ato acidentalmente heroico o
jovem percebeu que o celular não era somente algo da sua imaginação. Não
demorou para entender seu potencial destrutivo e o motivo de estar sendo
caçado. Voltou para casa pegou o que podia e partiu. No fundo era o que ele
realmente queria, fugir de tudo.
Numa outra cidade simplesmente pegou
uma chave e dormiu num hotel cinco estrelas. Tecnicamente ele não havia roubado,
pois não passou tempo nenhum no hotel. Assim foi vivendo durante meses até que
recebeu uma ligação do hospital. Depois de ouvir as palavras decidiu parar o
tempo tocando no seu Zi-fone.
Não
podia viajar o mundo como planejou, pois, todos os aviões estavam parados.
Decidiu que ia conhecer somente seu país. Viajou por várias cidades, estados e
foi percebendo que estava começando a se esquecer de quem era. Às vezes repetia
seu próprio nome em voz alta para não o esquecer. Não sentia mais fome, sede,
frio ou sono. Noutras palavras estava tornando-se imortal.
Passaram-se seis anos desde que Arys
havia congelado o tempo, seus olhos já não tinham mais expressão. Andava por
desertos vagando, perdera a capacidade de falar. Tinha visões com uma criança
brincando num jardim, ouvia um piano, e um homem brigando com uma mulher.
Uma vez viu algo em movimento andando
pelo deserto, um fantasma do antigo dono do Zi-fone, o vendedor. Seu cérebro
ignorou, pois já estava se esquecendo o que era movimento. Instintivamente seguia
a luz do sol. Havia esquecido seu nome, sua vida, quem era ou o que estava
fazendo.
Alguns anos depois encontrou uma
criança pequena brincando no deserto. O homem ignorou-a, mas ela começou a
brilhar mais intensamente que o sol. Como uma mariposa segue a luz, ele seguiu
a criança. Andaram por vários anos até que chegou numa cidade.
Ao chegar na cidade a criança brilhante
andava entre os carros e pessoas paradas seu brilho estava se apagando e Arys
quase sentia uma fagulha de tristeza. Muito lentamente estava tornando-se
humano novamente.
Arys foi percebendo que estava
reconhecendo a criança que já não era mais tão brilhante assim. Quando pôde
pronunciou estas palavras:
- Quem ser você? – A voz falhando. A
criança respondeu:
- Uma parte de você. – Arys insistiu:
- Quem ser eu?
- Uma parte de mim. – Respondeu a
criança sorrindo.
- Não entender. O que ser eu? – Insiste
Arys. A criança revela:
- Nosso nome é Arys.
Imediatamente depois um turbilhão de
pensamentos surgiu em seu cérebro. Seu primeiro beijo, sua cor preferida, as
partituras que havia decorado, o abraço de sua mãe, a rejeição de seu pai. De
alguma maneira milagrosa Arys voltou a si e lembrou-se do verdadeiro motivo de
ter fugido.
Foi até o hospital e viu sua mãe sendo
ressuscitada pelos enfermeiros, as imagens do acidente de carro voltaram a sua
mente. Arrependeu-se de ter insistido em se consultar com um psiquiatra, pois
mesmo depois do acidente de sua mãe os remédios de nada serviam. Tentou ter uma
vida normal enquanto sua mãe estava em coma, mas congelou o tempo quando
recebeu a ligação do médico ao saber que ela estava morrendo.
Arys se deu conta de que o peso de
escolher quem vive e morre não deve ser dado a nenhum homem. É um fardo que ninguém pode aguentar. O jovem
e promissor músico compôs uma última canção chamada: “O soneto para Lúcia”. Apenas ele pôde ouvir.
Antes de morrer lembrou-se da frase que
ouvira de sua mãe na noite em que seu pai foi embora:
- Sabe Arys, a vida às vezes é dura e
sem sentido. Acho que é por isso que eu escolhi a música. Quando eu toco piano,
eu posso fugir um pouco dela e viver no meu belo mundo, mas é quando eu toco
com você que esse mundo se torna completo, sem dor, choro ou angústia. Seu pai
foi embora, mas enquanto eu estiver viva eu vou te amar para sempre.
Arys se arrependeu de parar o tempo e
percebeu que ele só faz sentido quando se gasta com alguém que se ama.
Sentiu o último suspiro de sua mãe e
sorrindo desapareceu.
FIM