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sexta-feira, 5 de maio de 2017

O Sentido do Tempo


2010, numa grande cidade vivia um rapaz com grandes sonhos. Arys estudava música numa conceituada universidade do país, havia ganhado uma bolsa concedida somente aos excepcionais. Ele queria se tornar um grande maestro da Orquestra Internacional de Paris. Treinava todos os dias: domingos, sábados e feriados. Seus dedos já estavam calejados de tanto esforço, mas para o jovem estudante todo cansaço era ínfimo diante da sua ambição; “ser o melhor”.
Para se tornar um grande músico treinava mais de sete horas por dia. Em seu quartinho no centro da cidade, debruçava-se em livros de partituras repetindo as notas de composições clássicas ou mesmo criando suas próprias peças. Uma vida cansativa para quem exige muito de si mesmo, mas não infeliz para um músico.
Numa manhã há dez anos atrás, por acidente, acordou tarde para sua aula de composição musical criativa avançada, a disciplina que ele mais amava. Enfurecido jogou contra a parede o despertador que julgou ser culpado por seu atraso e sem tomar banho pôde acompanhar os últimos trinta minutos da aula. Quando chegou em casa percebeu um celular despedaçado pelo seu pequeno cômodo conhecido como seu lar.
Não tinha dinheiro para comprar um novo “despertador” ou o que a maioria das pessoas, menos Arys, chamam de celular. Lembrou-se então que perto dali morava sua ex-namorada que era rica Amanda, namoraram por alguns anos, porém Amanda terminara a uns três meses. No fundo Arys queria um pretexto para reencontrar a sua ainda amada Amanda. Claro que Arys pagaria assim que recebesse seu salário, era apenas um empréstimo.
Chegando lá tocou a campainha da bela casa dos pais de Amanda, ela o atendeu. Muito surpresa deu um abraço em Arys e lhe fez perguntas genéricas como “como você tá? ”. Enfim Arys teve coragem e revelou seu objetivo secundário:
- Então, na verdade, eu vim pedir emprestado...vim perguntar se você poderia me emprestar...é... – Suando frio e com nó na garganta.
- Dinheiro? – Amanda interrompe.
- Sim, mas é emprestado, eu juro que assim que puder eu pago. – Diz Arys coçando a cabeça.
Amanda pareceu surpresa e perguntou se ele estava passando por dificuldades. Arys negou tudo e revelou que só queria ter um pretexto para ver Amanda. Após alguns minutos de boa conversa, Amanda foi em casa e pegou o dinheiro. Educadamente ela diz:
- Bem, você se lembra que eu quebrei seu violino e que nunca paguei pelo conserto ou comprei um novo. – Arys simplesmente riu e falou de forma sincera:
- Aquilo foi um acidente eu nem lembrava mais.
- Mas eu não esqueci, considere minha dívida com você paga. – Diz em tom de brincadeira.
Os olhos de Arys ainda brilhavam quando cruzavam com o olhar de Amanda. Em sua cabeça queria convidá-la para um novo recomeço. Tudo aconteceu muito rápido, os dois não tiveram tempo de se despedir. Amanda disse boa noite e se despediu, Arys fez o mesmo e hesitou. Já se afastando da casa se lembrou das palavras de seu professor sobre a vida: “Às vezes nós devemos ter coragem de nos arriscar, não podemos simplesmente deixar uma chance passar. Vocês como futuros músicos devem ser os primeiros, pois lidam com uma arte caótica e complexa como a música. Tem que ter pulso firme para lapidar sua arte e pulso firme para aproveitar as dificuldades. ”
Arys deu meia volta e decidiu que convidaria sua amada para o cinema, esqueceu que não tinha dinheiro nem para a pipoca, mas não existe razão nas coisas feitas com o coração. Antes de tocar a campainha, vindo do interior da casa, ouve palavras que perfuram como uma espada em chamas o seu coração:
- ...deu vergonha, mas é claro que o cretino veio cobrar o violão idiota que eu quebrei. Você não vai cobrar essa merreca de mim se a gente terminar né?!
- Eu tenho dinheiro gatinha.
Confuso e meio tonto Arys jogou o dinheiro por baixo da porta e saiu desolado. No caminho para casa lembrou-se de uma outra frase de uma professora da quarta série: “A vida não é um mar de rosas. Não dá para brincar a semana toda e querer tirar dez na prova de matemática. Você vai se dar mal. ”
Sem despertador e sem dinheiro Arys resolveu fazer algo que detestava, pedir dinheiro a sua mãe. Preocupada evidentemente sua mãe deu seu cartão de crédito e disse que poderia comprar até roupas se quisesse. Ele planejava pagar no mesmo dia que seu salário fosse liberado.
Ele dirigiu-se a uma loja escondida, mas aconchegante chamada Tecno Tempo. E pediu ao vendedor um celular bom, barato e que tivesse despertador. O vendedor, com um sotaque que Arys não conseguia identificar, falou-lhe:
- Pois bem na Tecno Tempo, nós temos produtos inimagináveis. Aqui os sonhos se tornam realidade e você sempre sai satisfeito. – Surpreso com a resposta, Arys pôde apenas falar:
- Ok, que celular você me recomenda?
Com os olhos arregalados e um sorriso extremamente excitado, aponta para um celular no fundo da loja. O Zi-fone apesar de disfarçado estava num mini pedestal de vidro, sua cor amarela chamava a atenção e seu preço era de aproximadamente 300 dólares. Incomodado Arys questiona:
- Não está meio caro? – Rapidamente o vendedor retruca:
- Acredite em mim ele está infinitamente barato para suas funções. Esta é uma edição limitadíssima, poucos no mundo têm a sorte de possuí-lo.
Para se livrar do papo do vendedor esquisito Arys paga com o cartão de sua mãe e vai para sua casa. Era por volta de dez da noite quando chegou, preparou uma comida rápida e ensaiou durante algumas horas. Às três foi para a cama e tirou o celular da caixa para programar o despertador. Estranhamente o celular já mostrava o horário certo e apenas isso. Não tinha nenhuma outra função a não ser mostrar o relógio, Arys não acreditou e imaginou ser um defeito de fábrica. Pôs o celular de lado e dormiu.
No outro dia acordou profundamente relaxado e descansado o que o fez pular da cama, pois achava que estava muito atrasado. Seu pequeno quarto não tinha janelas e não podia julgar o quão tarde seria. Lembrou-se que apesar de inútil o celular ainda marcava a hora certa. Ainda ensaboado foi ver o quão grave era o seu atraso. O celular estava marcando a mesma hora no momento em que ele foi dormir, o jovem estudante conteve-se para não atirar outro celular pela parede.
Vestiu-se e saiu apressado para sua aula das nove, seja lá que horas eram. O corredor do apartamento onde morava estava escuro e silencioso algo incomum, pois pela manhã ouvem-se barulhos de máquinas de construção, carros e pessoas na rua. Não deu muita importância e saiu. Para sua surpresa ainda era madrugada.
Já faziam seis horas desde que Arys acordara, estava sentado na cama tentando se lembrar se teria sido dopado na noite anterior. Não conseguia pensar direito e achou que estava enlouquecendo. O silêncio era perturbador e já podia escutar os fluídos de seu corpo e seus batimentos tal como gritos ensurdecedores.
Dez horas se passaram e Arys já gritava por socorro definitivamente estava louco. Saiu pelo corredor batendo nas portas dos vizinhos pedindo ajuda. Ninguém se manifestava. Numa atitude desesperada arromba uma porta e se depara com uma cena bizarra.
Corre para o seu quarto e se tranca. Tremendo e suando frio se recolhe repetindo para si:
- Isso é apenas um surto, não é real, não é real! Quando isso passar vou procurar um psiquiatra e tudo vai ficar bem.
Arys lembrou-se do que sua mãe dizia quando acordava assustado de um pesadelo: “Calma, foi só um pesadelo. Sua mente é mais forte que tudo isso. ” Lentamente foi acalmando-se respirando mais pausadamente. Um barulho estridente como de um toque de celular ecoa em sua cabeça tão forte que chacoalha seu cérebro.
O Zi-fone estava tocando. Para aliviar a dor em sua cabeça o jovem assustado atende. Uma voz familiar fala do outro lado da linha:
- Você deve estar surtando agora, foi o que aconteceu comigo. Não se preocupe, você se acostuma com o barulho com o tempo. Devo dizer que o tempo agora passa a ser seu, você não pode avançá-lo ou retrocedê-lo, apenas pará-lo. Use-o com sabedoria, você foi a primeira pessoa que eu falei depois de muito tempo. Adeus. – A ligação é interrompida por um forte ruído.
Ainda mais confuso Arys acredita que tudo aquilo não passava de uma terrível e realista alucinação. O horário marcado no celular volta a correr. Do corredor escuta-se o grito de um vizinho.
- Mas que... colocaram uma bomba na minha porta!
Aquela tinha sido uma experiência assustadora. E a primeira pessoa com quem falou sobre o que tinha acontecido foi com a sua mãe Lúcia. Inicialmente sua mãe deduziu que seu filho tinha usado algum tipo de droga na noite anterior ficando bastante preocupada. Arys negou com veemência as suspeitas da mãe.
Após alguns dias sem entender o que tinha ocorrido Arys não frequentava mais as aulas na universidade de música e não tocava mais como antes. Lúcia percebeu que precisava ajudar seu filho:
- Me conta o que aconteceu. – Lúcia indaga com expressão preocupada. Com os olhos baixos Arys responde:
- Eu já te contei tudo. Mas sei que é difícil de acreditar.
Mais tarde Lúcia decide levar seu filho para um psiquiatra, em seu carro. Muitos acontecimentos após aquele dia mudaram profundamente Arys.
Após sessões de psiquiatria ele percebeu que não podia arrancar a angústia que sentia no peito. Os remédios que usava não surtia qualquer efeito. Resolveu entender a história por conta própria.
Entrou no seu antigo apartamento e recolheu o celular, guardou-o na embalagem e dirigiu-se até a loja para devolvê-lo. Arys queria provar para si mesmo que era mais forte do que qualquer problema em sua mente. Devolver o celular seria um ato simbólico que mostrava que ele estava no controle. Chegou na loja, mas só encontrou escombros sendo retirados por tratores. Assustado perguntou a um morador:
- O que aconteceu aqui?!
- Um maluco entrou aqui e se explodiu com a loja. – Respondeu o homem.
- Porquê?! – Pergunta o jovem com expressão assustada.
- Terrorismo, está em todos os jornais, você não assiste TV?
Após algumas pesquisas na internet, Arys soube que o terrorista se tratava de um ex-funcionário da loja, o mesmo que lhe vendera o celular dias atrás. Percebeu que se continuasse com isso enlouqueceria de vez, voltou para sua casa e retomou para suas aulas na faculdade.
No primeiro dia que voltou a universidade seus amigos o encheram de indagações, Arys não falou tudo por medo que fosse tachado de louco. Seus amigos ficaram tristes e ofereceram ajuda. Arys insistia que tudo estava bem.
Na aula da tarde uma amiga perguntou-lhe:
- Que horas são?
- Não tenho relógio.
- Então usa esse seu tijolo amarelo!
Arys volta o olhar para dentro da sua bolsa aberta e percebe que no impulso havia guardado o Zi-fone por engano. Sua amiga pressionou:
- Custa dizer a hora?!
Seu coração acelerou ao pensar o que aconteceu da última vez que tocara no celular. Hesitou. A amiga continuou:
- Meu Deus, você está com uma expressão de maluco.
Ao ouvir estas palavras tomou coragem e pegou o celular dizendo:
- São catorze e... – O jovem caiu da cadeira assustado.
Os alunos da sala estavam completamente paralisados. O que Arys mais temia aconteceu de novo. Tentou manter a calma, mas sem sucesso. Nervoso, tocou o celular e seus amigos voltaram ao normal. Ele só podia pensar o quão esquisito era seu transtorno e parou e retomou o tempo durante algumas vezes. Até que tiros foram ouvidos e um aluno passou gritando:
- Terroristas! Fujam!
Todos entraram em pânico e se esconderam debaixo da cadeira. Estava silencioso e passos podiam ser ouvidos do corredor. Lentamente se aproximavam. A porta foi fuzilada, mas antes que pudessem entrar, num comportamento quase instintivo Arys tocou a tela de seu Zi-fone e parou o tempo.
Após respirar fundou saiu de baixo de sua mesa e viu as várias balas congeladas, podia tocá-las e movimentá-las como uma peça de lego. Desviou uma bala que estava a pouco menos de dez centímetros da cabeça de um aluno apavorado.
Saiu da sala e percebeu que por volta de vinte homens estavam se aproximando da sala, eram como bonecos de cera hiper-realistas, estavam fortemente armados e usavam equipamentos de combate, com coletes a prova de balas, capacetes e máscaras. Arys afastou-os e tirou-lhes as armas e equipamentos.
Andou pela universidade atrás de mais homens como aqueles. Em todo o lugar que olhava, podia ver que o tempo não avançava em relação aos pássaros no céu, as formigas na grama.
Viu que a porta do banheiro masculino estava arrombada, lá dentro haviam dois homens com a mesma vestimenta um apontava sua metralhadora para fora enquanto o outro com o gatilho apertado parecia disparar contra um aluno, a pólvora já explodia pelo cano e a bala estava parada no ar.
Para sua surpresa Amanda sua ex-namorada e um cara com físico atlético estavam apavorados dentro de uma cabine do banheiro. O rapaz estava sem camisa e segurava Amanda como se estivesse protegendo-se do homem armado, parecia chorar desesperadamente. Amanda estava chorando e vestindo um sutiã rosa e com a maquiagem borrada, o cabelo loiro totalmente assanhado. Arys salvou a vida dos dois.
Após várias horas Arys desarmou todos os homens e amarrou-os colocando numa sala com uma placa escrita à mão com os dizeres: “Eu capturei todos, não sei explicar exatamente como fiz isso, mas fiz o que é certo. ” O rapaz deixou as armas e coletes quebrados em frente a sala que os homens estavam.
Após esse ato acidentalmente heroico o jovem percebeu que o celular não era somente algo da sua imaginação. Não demorou para entender seu potencial destrutivo e o motivo de estar sendo caçado. Voltou para casa pegou o que podia e partiu. No fundo era o que ele realmente queria, fugir de tudo.
Numa outra cidade simplesmente pegou uma chave e dormiu num hotel cinco estrelas. Tecnicamente ele não havia roubado, pois não passou tempo nenhum no hotel. Assim foi vivendo durante meses até que recebeu uma ligação do hospital. Depois de ouvir as palavras decidiu parar o tempo tocando no seu Zi-fone.
 Não podia viajar o mundo como planejou, pois, todos os aviões estavam parados. Decidiu que ia conhecer somente seu país. Viajou por várias cidades, estados e foi percebendo que estava começando a se esquecer de quem era. Às vezes repetia seu próprio nome em voz alta para não o esquecer. Não sentia mais fome, sede, frio ou sono. Noutras palavras estava tornando-se imortal.
Passaram-se seis anos desde que Arys havia congelado o tempo, seus olhos já não tinham mais expressão. Andava por desertos vagando, perdera a capacidade de falar. Tinha visões com uma criança brincando num jardim, ouvia um piano, e um homem brigando com uma mulher.
Uma vez viu algo em movimento andando pelo deserto, um fantasma do antigo dono do Zi-fone, o vendedor. Seu cérebro ignorou, pois já estava se esquecendo o que era movimento. Instintivamente seguia a luz do sol. Havia esquecido seu nome, sua vida, quem era ou o que estava fazendo.
Alguns anos depois encontrou uma criança pequena brincando no deserto. O homem ignorou-a, mas ela começou a brilhar mais intensamente que o sol. Como uma mariposa segue a luz, ele seguiu a criança. Andaram por vários anos até que chegou numa cidade.
Ao chegar na cidade a criança brilhante andava entre os carros e pessoas paradas seu brilho estava se apagando e Arys quase sentia uma fagulha de tristeza. Muito lentamente estava tornando-se humano novamente.
Arys foi percebendo que estava reconhecendo a criança que já não era mais tão brilhante assim. Quando pôde pronunciou estas palavras:
- Quem ser você? – A voz falhando. A criança respondeu:
- Uma parte de você. – Arys insistiu:
- Quem ser eu?
- Uma parte de mim. – Respondeu a criança sorrindo.
- Não entender. O que ser eu? – Insiste Arys. A criança revela:
- Nosso nome é Arys.
Imediatamente depois um turbilhão de pensamentos surgiu em seu cérebro. Seu primeiro beijo, sua cor preferida, as partituras que havia decorado, o abraço de sua mãe, a rejeição de seu pai. De alguma maneira milagrosa Arys voltou a si e lembrou-se do verdadeiro motivo de ter fugido.
Foi até o hospital e viu sua mãe sendo ressuscitada pelos enfermeiros, as imagens do acidente de carro voltaram a sua mente. Arrependeu-se de ter insistido em se consultar com um psiquiatra, pois mesmo depois do acidente de sua mãe os remédios de nada serviam. Tentou ter uma vida normal enquanto sua mãe estava em coma, mas congelou o tempo quando recebeu a ligação do médico ao saber que ela estava morrendo.
Arys se deu conta de que o peso de escolher quem vive e morre não deve ser dado a nenhum homem.  É um fardo que ninguém pode aguentar. O jovem e promissor músico compôs uma última canção chamada: “O soneto para Lúcia”.  Apenas ele pôde ouvir.
Antes de morrer lembrou-se da frase que ouvira de sua mãe na noite em que seu pai foi embora:
- Sabe Arys, a vida às vezes é dura e sem sentido. Acho que é por isso que eu escolhi a música. Quando eu toco piano, eu posso fugir um pouco dela e viver no meu belo mundo, mas é quando eu toco com você que esse mundo se torna completo, sem dor, choro ou angústia. Seu pai foi embora, mas enquanto eu estiver viva eu vou te amar para sempre.
Arys se arrependeu de parar o tempo e percebeu que ele só faz sentido quando se gasta com alguém que se ama.
Sentiu o último suspiro de sua mãe e sorrindo desapareceu.
FIM